As vanguardas do Prado
O ano passado, o Museu do Prado adquiriu, graças aos fundos do legado de Clara Sánchez, um quadro de María Blanchard, intitulado La boloñesa (La boulonnaise, 1922-23), que retrata uma das mariscadoras de Pas de Calais, no Canal da Mancha. A pinacoteca rompia assim o teto cronológico da sua coleção, até então estabelecido em 1881, ano do nascimento de Pablo Picasso. A obra da artista santanderina é posterior à sua fase cubista. Depois de que as suas naturezas mortas se confundissem durante uma época com as do seu querido amigo Juan Gris, a pintora desenvolveu um estilo muito pessoal, do qual este quadro é um bom exemplo, com as suas figuras rotundas e de ar melancólico.
No entanto, como nos explicou a nossa professora de artes plásticas da secundária nas nossas visitas mensais ao museu, as vanguardas estiveram sempre latentes em muitas das salas do Museu do Prado. Se com dezasseis anos me parecia fascinante ouvi-la explicar as razões pelas quais uma obra se adiantava vários séculos à modernidade, agora, quando passeio pela feira ARCO, que decorre estes dias em Madrid, penso nela e na sua extraordinária maneira de olhar os quadros. Chamava-se Covadonga García Bueno. Como já não a vejo há muitos anos, sirva de homenagem este texto, que percorre quatrocentos anos de história em busca das origens do impressionismo, do expressionismo, do surrealismo, da abstração e do concetual. Por Ignacio Vleming.
Vista del jardín de la Villa Medici en Roma, circa 1639. Velázquez, o impressionismo.
Entre 1629 e 1631, Velázquez residiu em Roma graças à proteção do monarca Felipe IV, que considerava imprescindível que o seu pintor de câmara recebesse formação sobre o gosto italiano. Em Itália, Velázquez descobriu a obra de Rafael, Miguel Ángel, Guercino, Lorena e Bernini, e travou conhecimento com Ribera, o Spagnoletto.
Após esta experiência, o seu estilo mudaria consideravelmente, dando protagonismo aos nus inspirados na estatuária antiga e a sua paleta encheu-se de vermelhões, verdes e azuis. Nos jardins de Villa Medici, o artista pintou dois quadros à margem de todas as influências. Talvez os tenha realizado num momento de descanso, sem a pretensão de que algum dia viessem a adornar qualquer parede. São obras com um aspeto de esboço, como se se tratasse de um breve apontamento num caderno de desenho. Foi inclusive comentado que talvez o pintor os tivesse realizado ao ar livre - algo inusual no século XVII – e que com eles Velázquez se adiantava assim três séculos à técnica conhecida como en plein ar (ao ar livre), iniciada em França pelos artistas da Escola de Barbizon.
O que provavelmente nunca imaginássemos é que, quando em 1865 Manet visitou o Museu do Prado, esta obra se viesse a converter numa referência para os impressionistas, do mesmo modo que os mestres italianos o tinham sido para Velázquez. Estas duas pequenas paisagens, de pinceladas soltas e vibrantes, está contém em si todo Monet, Pissarro, Sisley e Renoir.
Una fábula, 1580. El Greco, o expressionismo.
É provável que esta pequena pintura de El Greco faça referência a uma obra do grego Antifilo, desaparecida e citada por Plínio, o Velho, na sua História Natural, em que se refere à beleza do fogo e à dificuldade da sua representação. Em qualquer caso, esta tela poderia constituir um resumo do característico estilo do artista cretense.
O foco de luz emana de um pedaço de material incandescente que uma criança sujeita entre os seus dedos. Acompanham-na um macaco com um gesto humano e um homem com um gesto animal. As cores ácidas e irreais, as pinceladas densas, a confusão das texturas – os panos que parecem rochas, as rochas que parecem nuvens – e a vivacidade de cada objeto, como se fossem agitados desde o seu interior, fazem de El Greco um claro precedente das diferentes correntes expressionistas.
Picasso, que descobriu a sua obra nas salas do Prado, converteu-se no seu melhor herdeiro durante a sua época azul; os pintores de Der Blaue Reiter (Kandinsky, Kee, Macke…) consideravam-no um precursor; o cineasta russo Sergei Eisenstein, realizador de O Couraçado Potemkin, dedicou-lhe um maravilloso ensaio, e Jackson Pollock considerava-o um dos artistas que mais o tinham influenciado.
Perro semihundido, 1819-1823. Goya, a abstração.
Muito antes que Picasso, Goya foi queimando etapas numa intensa trajetória pessoal até alcançar o seu apogeu como artista. Ao longo de oitenta anos esgotou todos os caminhos da pintura. Começou como herdeiro do barroco, admirador de Rembrandt e de Velázquez; com os cartões para tapeçarias aproximou-se dos mestres do rococó franceses; com Os fuzilamentos de 3 de maio em Madrid converteu-se talvez no primeiro romântico, ao tomar consciência de que os heróis encarnam as nações inteiras; nas suas séries de gravuras, como Os caprichos e Os desastres da guerra, adentrou-se no universo dos sonhos, tal como o fariam mais tarde os pintores simbolistas; também foi o criador do retrato psicológico e com a Lechera de Burdeos (A Leiteira de Bordéus), um dos seus últimos quadros, pisa os calcanhares de Manet e situa-se numa corrente de arte mais preocupada com refletir as sensações do que em copiar a realidade.
A obra é Perro semihundido (Cão semiafogado), uma das pinturas murais que decoravam a Quinta del Sordo, e talvez a sua obra mais audaz. Tão atrevida e revolucionária que, muitas vezes, como aconteceu com o resto das pinturas negras, foi considerada uma obra falsa. Goya pintou esta obra sem ânimo de lucro, para que lhe acompanhasse como as vistas que tinha desde a sua casa da veiga do Manzanares. Durante décadas permaneceram ignoradas, até que, em 1878, o empresário Frédéric Émile d’Erlanger as apresentou na Exposição Universal de Paris, doando-as mais tarde, em 1881 – ano do nascimento de Picasso – ao Museu do Prado. A cabeça do cão (um focinho, uma orelha, um olho) é o único elemento figurativo, quase irreconhecível. O resto do quadro (a areia, o ar, o céu) constitui uma abstração que nos recorda a Mark Rothko, Tàpies e Millares.
La extracción de la piedra de la locura, 1494. El Bosco, o surrealismo.
El Bosco foi surrealista antes do surrealismo, ou pelo menos assim pensava André Breton, pope de um movimento que colocou os impulsos do inconsciente no centro da arte. Do grupo, os espanhóis Salvador Dalí e Luis Buñuel descobriram, na década de 1920, quando viviam na Residência de Estudantes de Madrid, O jardim das delícias, O carro do feno, As tentações de Santo António Abade, A mesa dos pecados capitais e A extração da pedra da loucura, o extraordinário conjunto de pinturas sobre madeira do pintor flamenco que o museu conserva e que o monarca Felipe II tinha colecionado de maneira obsessiva.
Os investigadores não chegam a acordo sobre o que realmente queriam transmitir estas obras. Algumas cenas parecem fazer alusão aos bestiários, lendas e superstições medievais, outras são burlas do poder eclesiástico, da autoridade imperial e da burguesia. A obra que escolhemos alude a um provérbio holandês, escrito em letras góticas em torno ao óculo, que diz: “Mestre, extraia-me a pedra, o meu nome é Lubber Das”, um personagem popular que representa a estultícia. Embora não se trate da única representação deste tema na pintura do século XVI, é, sem dúvida, a imagem mais eloquente: o funil que coroa o cirurgião, a mulher reclinada com um livro na cabeça… Quem será mais louco?
Agnus Dei, 1640. Zurbarán, o concetual.
De todos os grandes mestres do Século de Ouro, Zurbarán é, sem dúvida, o mais espanhol. Perante os seus quadros observamos que não se preocupou demasiado com o domínio da perspetiva ou com o estudo da anatomia, questões fundamentais nos ateliês italianos. O pintor de monges e mártires dava mais importância à captação física das texturas, dos volumes e da luz do que aos preceitos teóricos dos tratados de arte. Como se tivesse duas grandes lupas nos olhos, Zurbarán analisava a essência das coisas, que nos seus quadros alcançam uma elevação espiritual tal que parecem ser as coisas reais, as coisas em si e, ao mesmo tempo, símbolo do imaterial.
Estas qualidades fizeram com que Zurbarán tenha sido reivindicado sucessivas vezes ao longo do século XX. As suas composições são uma espécie de obras concetuais, que transmitem sempre mais do que o que é aparente. Agnus Dei é o cordeiro místico, mas é também um simples cordeiro, um de tantos, como se se tratasse simultaneamente de uma alusão velada a Santa Teresa de Jesús, “Dios está entre los pucheros” (Em meio às panelas também anda o Senhor), e um precedente do “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo) de Magritte.
Agora, com os olhos bem abertos, continuo o meu passeio por Arco, a feira de arte contemporânea de Madrid, em busca dos mestres da arte contemporânea.
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